Uma velha viva

Não estava ali por estar apaixonada. Não dormira bem naquela noite por estar pensando em sua própria cegueira e nas coisas que abandonara por eles. Tentou secar-se um pouco para sentir-se menos patética. Não encontrava a estação de rádio, nem o sono, nem a porta do closet. Sentia frio e uma angústia rara. Era como se agora tivesse provas de que havia enganado-se todo esse tempo, desde a infância até a idade adulta, e agora em sua velhice que cheirava a mijo e talco.

A velhice, que agora recaía sobre a pele das mãos, os cantos das bocas – onde o que antes era sorriso insistia em reaparecer, tinha sabor de auto-engano. Tinha quatro vincos grossos de pele – dois de cada lado dos lábios também com aspecto de passado – que ressaltavam a idade que pensava ter. Não tinha mais escudos contra os anos e mais, não tinha mais desculpas suficientemente boas para não ter feito o que sonhara. Os culpados já não estavam. Eram fantasmas. Nem ela mesma estava. Há muito era vulto que tinha hora e rotina de estar e ser. Havia decorado uma rotina de ser humano. Para quem não queria compromisso ela estava por demais compromissada com sua escala de ser nenhuma novidade durante os dias e queixar-se qualquer coisa das mudanças poucas e menores. E a cada novo rumo ela sofria, e sofria, e sofria. Por mais contraditório que possa parecer, sofria mas mantinha-se igual. Demonstrava tenacidade. Sentia falta do antes e por isso se apegava ao passado. Fantasiava, quando a memória permitia, dias melhores de anos que iam longe, que só existiam ali, no mundo branco reformulado e encaixotado dentro de si. Estivesse frio, estivesse um dia belo, a memória lhe servia. Somente ali as coisas eram como ela queria. Tinha encontrado a perfeita caixa de música. Do lado de fora, ela tocava um rosto velho. Sentia os calos, sofria os males que os velhos sofrem. Havia muito estava pronta. Naquela noite, ela abriria a porta.

Imagem: Tina Modotti, Tiger's Coat (1920).

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