Naturalized


Uma de minhas atribuições de bibliotecária é intermediar aulas para quem vai virar cidadão americano. O auxílio começa quando os futuros cidadãos entram com o pedido de naturalização por meio de um formulário chamado N-400. Nunca foi de minhas aulas favoritas, mas com o tempo eu passei a valorizar meu papel de intermadiária e aprendi que além de a aula ser muito importante, poderia também me divertir tanto quanto ensinando português ou inglês.

Nunca pensei que viraria cidadã. Nunca tive essa idéia. Contra a minha vontade, meu ex-marido fez todo o processo, pagou as taxas, me incentivou, tentou me mostrar seu amor através desse gesto, e me falou sempre da importância de eu vir a ser um dia cidadã americana. Eu nunca entendi que isso fosse prova de amor. Talvez o esforço dele fosse, hoje vejo que sim. E sou grata por isso.

A vida dá voltas. Velho cliché tão cheio de verdade. Numa dessas voltas eu assumi o cargo de learning services liason ou literacy contact para uma biblioteca pública de porte médio no meio do nada, numa cidade de tamanho pequeno em que tudo parece perfeito. Me convidaram a ditar as tais aulas, e eu topei, num entusiasmo meio amarelo de quem havia passado pela experiência a pouco tempo e tinha toda uma história para contar. Cumpri o papel. Talvez sem o brilho das outras aulas, mas comecei a desempenhá-lo. Talvez seja que se eu não sinto que dou tudo de mim a brincadeira fica sem graça. Pode ser isso.

Creio que venho ensinando essas aulas já há dois anos. Volta e meia meus alunos voltam para me contar como foi a entrevista final, quando receberam o certificado de naturalização, como foi a cerimônia e coisa e tal. É muito gratificante ver o sorriso deles e o encantamento com se agarram a esse sonho. Alguns têm objetivos muito definidos. Querem o passaporte americano, querem trazer as famílias, querem um emprego ao qual somente cidadãos podem se candidatar.

Pois então, euzinha que saí de Porto Alegre com uma mão na frente e outra atrás, sem saber falar uma palavra de inglês, achando que nem gostava do idioma, recém-casada e longe da família, virei cidadã. E tanta, tanta coisa aconteceu nesse meio tempo. também virei professora-bibliotecária. E passei a ensinar aquilo que eu não aprendi para mim: como fazer para virar um cidadão deste país para o qual muitos querem vir. E ao qual muitos criticam, inclusive eu. No viés dessa estrada, estava eu. No lugar em que era necessitada, mas que nunca me apeteceu.

No sábado, uma de minhas aulas que mais tinha dificuldade, mal falava inglês e estava insegura com relação a prova, veio até a biblioteca e me disse, muito emocionada: eu passei e as tuas aulas me ajudaram muito. Tudo foi exatamente como a gente estudou. Me emocionei. Há muito tempo não sentia que o que estava fazendo realmente estava funcionando. Ela com seu singelo agradecimento, me mostrou que é bom estar desempenhando esse papel.
No domingo, eu a vi de novo, desta vez enfrentando uma fila de mais de duas horas para votar. Neste país, existe um sistema de “early voting”. Sistema esse que deveria ajudar a quem quer votar antes do dia das eleições fora do seu recinto eleitoral. Dessa vez as filas são homéricas e acredito que tenham batido recorde.

Pois ontem, munida de espírito cívico, eu votei. Votei por acreditar em mudança. Por acreditar no meu papel. Por querer algo diferente. Por fazer parte. Votei para tentar ajudar. Para fazer a minha parte. Exercitei o direito mais importante que é dado a um cidadão americano, o direito ao voto.

Para novembro de 2009 está programada a exibição de um filme para o qual participei há dois meses, no qual me entrevistaram para o History Channel. Eles filmaram duas de minhas aulas de cidadania e duas de minhas alunas. Eu fui entrevistada duas vezes para o projeto que está sendo realizado no país inteiro. As melhores histórias vão aparecer no filme. Espero que a minha seja uma delas, afinal de contas fazer tudo que eu fiz em sete anos em terra estrangeira parece interessante o suficiente . Quero acreditar que sim. Se isso acontecer, por ironia, o meu menos esperado projeto e a conquista menos cobiçada, ganhariam notoriedade em nível nacional. Por mero acaso.


Sei que a Dona Lola seria a pessoa mais contente em ver isso. E foi muitas vezes por ela que mesmo sem ter vontade de seguir, eu vinha para o trabalho e dava as minhas aulas, na fase mais conturbada da minha vida, que foi quando ela se foi. Dona Lola, teu amor me sustenta, mesmo sem estares.

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