Os dias 14 de outubro

O passado não volta. Nem os teus aniversários não comemorados. Os quatorze de outubro que perdemos. Os que vamos perder. O quatorze de outubro de ontem. O dia que eu tão solenemente ignorei, mas eu sabia. Eu sabia. Eu sabia que era teu aniversário e que se estivesses viva seria mais um quatorze de outubro que tu tentarias fazer com que fosse apenas mais um dia. Mas não era. Foi o dia em que nasceste. E que deste início a tantas coisas boas na vida de tantas pessoas. Estiveste grávida de mim em um quatorze de outubro.
O ano era 1977. Me pergunto que sentiste? Que sentiste ao carregar em ti minha vida tão frágil naquela data que tanto desprezavas e que tanto te feria? Terei te trazido ao menos um pouco de alegria? Eu sei que não gostavas do teu aniversário por causa do meu avô, teu pai. Mas isso nunca ficou muito claro para mim. Só agora por saber a dor que ele te causou eu entendo que não deveríamos ter esperado por ele. Mas isso são outros quinhentos.

Pois então hoje, um dia depois do teu aniversário, eu te conto as novidades. Cris agora mora perto de mim, como tu sempre quiseste. Eu continuo trabalhando, estou bem, tendo reconstruir minha vida. Estou aprendendo tango e me considero uma boa tanguera. Tenho amigos, um canto para chamar de meu, responsabilidades, uma vida que se pode chamar de real. Passo por fases de depressão. A vida na Flórida não me encanta, mas me serve. Estou tentando encontrar meu lugar no mundo, mãe. Escrever tem sido penoso. Encontrar brilho nas coisas do dia-a-dia também.
Ontem foi um dia especial. Usei pela primeira vez uma blusa que foi teu presente antes que tu te foste. Estavas acumulando presentes para quando o Mr. M. fosse visitá-los naquele final de semana de dia das mães, em maio de 2006. Não chegaste a me ver abrindo os pacotes. Nem usando nenhum daqueles presentes tão especiais. Os sapatos dourados, a blusa verde, a saia brilhosa. A saia que eu uso para o tango. A blusa que eu usei ontem para o show do Bajofondo. Muitos momentos permeados por teu amor.
Mãe, o show foi memorável. Não existe melhor palavra para descrevê-lo. O homem que estava ao meu lado também é memorável. Ele realiza meus sonhos sem saber que são meus sonhos. Ele me faz vibrar. Ele me reconhece no escuro, no tumulto, no silêncio, na imensidão. Ele é. Cada poro e cada sinal em seu corpo são rotas. Mapas. Mapas que levam a lugares pelos quais eu esperava, mas que também são novos.
Depois saímos para celebrar a vida. Ainda mais. Para continuar. Eu com minha rosa entre as mãos, a outra mão na dele. E ele com sua alma tentando encontrar a minha. Eu não sabia pelo que ele estava passando, mas ainda assim, vivemos uma noite de encantamento. Fomos felizes como poucos amores propiciam. Nos entregamos. Ele com o azul dos olhos dele, eu com meus olhos verde-mate. Ele com essas ganas que ele tem de viver. Eu com essa minha calma estranha que tem me sustentado desde que te foste.

Pois mãe, sinto tua falta. Por isso te mando esta carta. Para que saibas que, dentro do possível, estou muito bem. Teu lugar é uma oca escura falta, mas também és em mim. Te vejo no que vivo. Te vejo em meus sonhos. Te amo um amor saudoso e cheio de carinho. Obrigada, mãe. A vida segue andando, e eu ando sem ti e contigo em todas partes. As vezes te visito no Atlântico. E parece que me queres dizer algo. Mãe, a vida urge.

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