Trazer e levar

Ela escreve com o preciosismo de quem se atenta ao que é perfeito, o preciosismo de quem quer a palavra exata, a palavra mais eloquente, mais decisiva. Diz as coisas que eu penso. Sente o mesmo. E sei que me manda um carinho especial de longe, embora também necessite colo.

Estou no centro. Não, não, estou na pista da esquerda e observo um carro branco, sem janela e com plásticos colados nas extremidades da porta. Um rapaz, jovem que perece sujo, dirige. Olho para o banco traseiro e vejo um menino de poucos anos. Eu os observo por alguns segundos, entre uma respirada cansada e outra, entre pensamentos de auto-comiseração e a angústia de não saber o porquê de sentir-me triste.

Pensei no choro convulsivo desta manhã, na frente do espelho. Me achando patética por chorar como uma pequena menina perdida. O cachorro me olhava de longe, com cara de quem entende. Uma pena que eu tenha pensado em deixá-lo para adoção num lugar tão deprimente. Mas a vida nos surpreende e ele teve que voltar para mim. Se lembrará ele do que eu decidi?

Tocava um tango - uma milonga no carro e pensava nos pássaros ao longe. Todos os dias o mesmo trajeto. A mesma velocidade. Os mesmos medos. E ali parada, me dei conta que ao lado do motorista jovem, havia uma senhora já de certa idade. Vi suas mãos enrugadas. Não pude alcançar-lhe o rosto, trocar olhares com ela. Pensei: onde estará a mãe do menino? Ele seria o pai?

Chego ao meu lugar de trabalho e vejo uma mulher atraente, num conversível também branco, chique – o carro – ela eu não sei, de cabelos lisos e negros ao vento que sai com pressa do estacionamento. Penso que eu deveria batalhar mais e voltar a estudar para um dia poder me dar ao luxo de soltar meus cachos dourados ao vento numa tarde de quarta-feira. E penso nas disparidades da vida.

Chego ao trabalho cansada de estar cansada, cansada de minha própria mente teimosa. Me preparo para enfrentar meus velhos fantasmas e as caras pedintes do tais clientes da biblioteca. Os que pagam meu salário, os que pensam que trabalho para eles.

E eis que alguém me pede uma caneta emprestada. É ele. O rapaz do carro branco. Tímido, parece que não toma banho há alguns dias. E então vejo o menino e a senhora. Sorrio para ela. Mas ela não retribui. Deve ser uma dessas pessoas que sofreram tanto que não acreditam na bondade alheia ou a percebem com uma certa carga de pena. Rapidamente a julgo aqui deste canto do mundo.

Verdade seja dita que meu olhar tinha mais de pena do que de bondade.
Naqueles curtos segundos no semáforo foi o que eu senti: piedade. Que vida teria aquela criança? Como seria ele como pai? Onde estaria a mãe? Como teria sido quebrado o vidro do carro. Como pagaria pelo conserto?

A visita deles se estende por alguns minutos, meia hora talvez. O menino é lindo, se comporta bem. Se veste de Homem-Aranha. O rapaz alto, tem estilo. Leva um cachecol no pescoço, uma jaqueta curta que se parece com aquelas dos anos oitenta e jeans apertados e claros. O rapaz muito magro. Sentiria fome?

Vão embora. E levam consigo uma dor que é minha. E uma esperança que talvez seja lugar-comum.

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